2010-12-01 Marcha ao Javali - Trilho da Boulhosa

Dia 1 de Dezembro, data comemorativa da restauração da independência, após 60 anos de domínio filipino, e todos recordam a lenga – lenga monocórdica, decorada e repisada na 4ª classe: no dia 1 de Dezembro de 1640 reuniram-se 40 conjurados, foram ao paço da Ribeira e prenderam a duquesa de Mântua e mataram o português traidor, Miguel de Vasconcelos, que estava escondido num armário de guardar papéis. Da janela do paço, aos gritos de “liberdade, liberdade”, proclamaram rei D.João IV, oitavo duque de Bragança.

O tempo estava de feição para caminhar, contrariando as previsões meteorológicas, apesar de frescote, mas sem chuva. Os conjurados, desta feita, do javali, rondavam a meia centena, sedentos, desta vez, por trinchar um javardo montanhês.

O trilho desenrola-se numa amplitude panorâmica bem rasgada de horizontes, podendo ver-se matas queimadas, criminosamente incendiadas, nem outro podia ser o motivo, linhas de água encosta abaixo, extensos prados com rebanhos e manadas de gado bovino. Atingida a serra da Boulhosa, no planalto até o corpo parece mais leve e o silêncio, a música mais suave da natureza. Soutos de carvalhos e castanheiros, em perfeita harmonia com os pastos verdejantes e mimosos, a par das já reduzidas espécies de caça, como perdizes, coelho bravo, lebres e javali, fazem de todo este cenário um quadro pictórico sem precedentes, que Júlio de Lemos em seu livro “Campesinhas” bem enalteceu.

Esta caminhada, por terras courenses de Insalde, onde a beleza rústica abunda e em permanente exposição, sem retoques. Curiosamente, a freguesia de Insalde pertenceu à comarca de Monção, depois à de Valença e, em 1878, ao concelho de Paredes de Coura.

Na cauda da coluna pedestre, durante algum tempo seguia na retaguarda um trio veterano, o Mário, Parente e o Luís. Ninguém imagina os empolgados e polémicos arrazoados sobre a causa animal. Dizia-se, então, que “com licença” o porco deriva do javali e deste se distingue no facto de ter menos pelo, ter pernas mais altas e uma dentuça de menor desenvoltura. E o porco bísaro? Bem, esta espécie entronca no porco céltico, cujo povo nosso antepassado nos legou a tradição da matança, com todo o ritual que ainda se vai mantendo. Porém, o bísaro apresenta-se mais alto, orelhas grandes, largas e pendentes, o tronco comprido e o dorso arqueado. Não é que as carnes de bísaro são mais saborosas e menos toucinhadas?!...

Vinhais, concelho do Parque Natural de Montezinho preserva com orgulho e proveito a suinicultura do bísaro. A transformação da carne deste porco em produtos tradicionais regionais, aproveitando um recurso genético autóctone - o Porco Bísaro – converteu o Fumeiro de Vinhais no primeiro a nível nacional, o qual se realiza, anualmente, entre a primeira e segunda semanas de Fevereiro.

Todos os caminheiros participantes foram poetas e artesãos, neste dia; na paisagem, os versos campestres de uma poesia bucólica, traduzida numa caminhada, por um lado, e nas pegadas deixadas e nas fotos tiradas, as peças de um puzzle policromático encantador, por outro.

Sobre a montaria ao javali, recordo uma passagem do livro “Banhos de Caldas e Águas minerais”, de Ramalho Ortigão, relativa a uma caçada no Gerês, literária e magistralmente bem descrita, sobre um episódio de arrepiar, só de ler! O último caçador e guia da montaria falhara os dois tiros da sua clavina, “o javali cresceu para ele e, na precipitação da fuga…trepou desarmado para o alto de uma árvore… Então o porco, envolvido pela matilha furiosa, filado com dentes anavalhados e maxilas rijas e persistentes, como tenazes fixadas com parafusos d'aço às partes mais sensíveis do seu corpo, rolava expirante, bramindo, golfando espuma e sangue… mas o que estava trepado nos galhos da árvore não descera durante o combate nem respondia às vozes dos seus companheiros vitoriosos.

Estava lívido, imobilizado, com os beiços brancos, a boca entreaberta, os olhos fitos. Fulminado pelo terror, não via, nem ouvia. Desceram-no em braços, prostrado, inconsciente, passivo, como um idiota. Banharam - lhe as fontes e os pulsos com água fresca, fizeram - no beber, e deram-lhe fricções de aguardente pela espinha dorsal. Depois de longos e reiterados esforços o pobre guia recuperou a final as suas faculdades, mas tinha perdido o uso da fala, e ficou mudo até ao resto dos seus dias “.

Eis que chegamos à Casa do Xisto, que dá o nome ao restaurante, enfim, era o findar de uma jornada de dificuldade menor, mas muito sugestiva, com um final feliz, gastronomicamente falando. Houve tempo e a rara oportunidade de ver alguns porcos bísaros misturados com seus hermanos de raça, os javalis ou javardos, como queiram. O local do restaurante é um mini -paraíso turístico. Na verdade, não falta a tradicional horta e os currais de animais, para além da pista de mini -motos e, ainda, o aluguer de bicicletas, buggies e moto 4.

Desordenadamente sentados à mesa, coube-me por vizinhos o Júlio e a Marina, a Luísa e o marido, que não me deixaram ficar só na arte de bem comer e até beber, valha-nos a assistência primorosa do serviço de restauração: foi comer e beber tranquille. Logo de entrada, foram umas fatias de presunto, chouriço, croquetes, rissóis e orelheira de porco bísaro, isto para começar. Os vinhos apresentados pelo patrão da casa primavam pela qualidade, para uma bolsa mediana, ora vejam, meus senhores: um vinho douro doc tinto Cadão reserva 2005, excelente; um alentejano tinto Defesa, da Herdade do Esporão; nos vinhos verdes, um branco da cooperativa de Monção, bem bom, e um atrevido verde tinto, monocasta vinhão, marca Aguião 2009, de primorosa qualidade, entre outros. A nota máxima vai para o primeiro e último. Parabéns ao patrão, pois, revela ser um refinado escanção.

Vieram os rojões de bísaro acompanhados de arroz das matanças, batatinhas assadas, hortaliça salteada e costelinhas de javali. Que rico manjar! Comeu-se bem, sem enfartar! Para sobremesa estava reservada uma surpresa, um doce bem apetitoso para acicatar mais um copo. Por fim, um bom digestivo a propósito, licor de bísaro, como não podia deixar de ser, fazendo lembrar o tal de “levanta o pau”. Faltava a música, os versos e as cantilenas, lamentava e com razão o Mesquita.

Com a arte e saber do restaurante Xisto, um passeio por estas bandas vale bem a pena, se a alma não é pequena!

Luís Gonçalves

Vianatrilhos

Dados do percurso

Informação sobre os aspetos mais significativos:

Data2010-12-01
Tempo de deslocação01h 44m
Tempo parado00h 51m
Deslocação média 4,2 Km/h
Média Geral2,8 Km/h
Distância total linear7.3 km
Nº de participantes46