2002-08-28 Romeiros a S. João D'Arga

Esta iniciativa teve como objectivo fazer reviver de certa forma a Romaria de S. João D'Arga, caminhando ao encontro do local da festa, através do trilho que parte da aldeia de Montaria, passando pelo viveiro florestal, encosta da Branca, Chã do Guindeiro, Ribeiro de S. João, atingindo-se a Fonte da Telha, já bem perto do Convento de S. João D'Arga.

"É assim que anualmente, de 28 para 29 de Agosto, ocorrem de todo o lado romeiros dispostos a passar uma noite inesquecível. No coração trazem a fé e a folia, nas mãos carregam as oferendas com que "compram" as boas graças do Santo.

Na romaria de S. João D'Arga também não se esquecem as dádivas ao "Senhos Diabo", não vá o infortúnio bater à porta. "Pedir ao Senhor com um olho no Diabo", é assim a noite da romaria"

José Almeida

Amigos da Chão


LENDA DA SERRA DE ARGA

A impaciência do jovem Egica contrastava com calmaria dessa linda manhã de Primavera. O sol iluminava aquecia o solo com o seu beijo quente, a passarada esvoaçava saltitante, sem os problemas daqueles que habitam terra. Mas o jovem Egica não via, não ouvia, não sentia nada mais à sua volta do que o objecto que o preocupava.

Preparado para montar de repente no seu cavalo veloz - caso surgisse qualquer complicação ou a sua bem amada aparecesse, tal como estava combinado - Egica encheu o peito de ar para combater a respiração difícil que lhe causava o desespero em que se encontrava. Eulália - o seu grande amor - dissera-lhe dos projectos de seu pai, o rei Ervígio: casá-la com o guerreiro Remismundo. E logo o par amoroso planeou a fuga que lhes daria a liberdade. Mas Eulália não chegava no momento combinado. Eulália demorava-se. Porquê? Teria o rei descoberto o plano que haviam arquitectado com tanta minúcia?

O Sol avançava na sua linha de movimento aparente. E a impaciência de Egica avançava também pelo seu corpo, transmitindo-a ao próprio cavalo, que batia com as patas no solo.

De súbito, reteve a respiração. Alguém contornava a esquina murada, com passo leve e apressado. Era Eulália, finalmente! Ele correu para ela. Tomou-a nos braços.

- Querida! Tenho a sensação de ter esperado uma eternidade!

Ela tremia e falou em voz baixa, como se temesse ser ouvida:

- Egica! Partamos imediatamente! Os soldados de meu pai perseguem-me! Deram pela minha fuga!

O jovem ajudou-a a subir para o cavalo e recomendou-lhe, enquanto montava também:

- Segura-te a mim. O cavalo é veloz...

E, sem mais explicações, Egica esporeou o alazão e partiu como uma seta.

No ar ficou por um momento o eco desse galope desenfreado...

Entretanto, os soldados de Ervígio procuravam o par em fuga. Não se atreviam a regressar sem a missão cumprida. Contudo o dia ia-se prolongando, os cavalos enchiam-se de cansaço e espuma, e o próprio cheiro a Primavera parecia cúmplice na fuga de Eulália e do jovem Egica, envolvendo-os no seu manto de mistério para que não fossem encontrados...

A tarde já ia em meio quando jovem fez descer a sua noiva e a conduziu junto a um regato, para descansarem.

Receosa, ela olhou em volta.

- Teremos levado grande dianteira?

Ele beijou-lhe a testa coberta de pó.

- Querida, nada receies! Eles perderam-nos de vista e julgam que seguimos para o norte, onde me era fácil encontrar gente amiga. Porém... troquei-lhes as voltas...

- E para onde vamos?

- Vou tentar atravessar a Galiza e procurar refúgio seguro no Mosteiro Máximo, onde sei que se encontra um grande amigo de meu pai. Ele nos ajudará!

Com voz ansiosa, Eulália perguntou:

- Ainda estamos longe?

O braço forte do jovem guerreiro ergueu-se, apontando o horizonte.

- O recorte do Monte Medúlio já se divisa além. É só mais um esforço!

- E é nesse monte que existe o mosteiro que procuras?

- Sim, meu amor. Verás que tudo correrá bem!

Ela sorriu-lhe. Um sorriso quase infantil. Mas logo a sua expressão entristeceu.

- Só por ti receio, Egica!

- Por mim? E por ti? Já pensaste bem o que viria a acontecer se os soldados de teu pai nos apanhassem e conseguissem arrancar-te dos meus braços?; Confesso-te que preferiria a morte, mil vezes!

Ela levantou-se como quem descobre de súbito um fantasma.

- Continuemos a cavalgar! Tenho medo! Detesto Remismundo. É traiçoeiro, feio e irascível. Se te apanham, matam-te! Ele odeia-te. Odeia-te porque te inveja!

Egica sorriu, numa tentativa para acalmar a sua bem amada. Passou-lhe o braço pelo ombro. Puxou-a para si docemente. Mas como ela olhasse em redor com o medo estampado no rosto, ajudou-a de novo a montar, declarando-lhe:

- Na verdade é melhor seguirmos viagem quanto antes. Teremos de chegar ao mosteiro primeiro que a noite desça sobre a montanha.

O cavalo abrandou a marcha. Estava visivelmente cansado. A penumbra que antecede a noite envolvia completamente aquele estranho grupo no cenário grandioso do Monte Medúlio. Lá estava o Mosteiro Máximo, meta dessa carreira que durava há algumas horas. O silêncio naquele local e àquela hora era impressionante. Ouviam-se as próprias respirações, alteradas pelo cansaço e pela emoção.

Descendo da montada, o par fugitivo dirigiu-se para o mosteiro, e bateu à porta, discretamente. Um homem com o rosto quase tapado veio abrir. Egica tivera o cuidado de colocar Eulália fora do alcance visual do monge. E perguntou, com certa ansiedade na voz:

- Irmão, perdoai se venho molestar-vos a esta hora. Mas precisava de falar com urgência ao irmão Gondemaro.

O monge porteiro fechou o postigo por onde espreitara. O silêncio voltou a envolver a serra. A espera foi curta, mas o coração de Egica bateu mais forte quando o postigo voltou a abrir-se. Desta vez, porém, assomou um outro rosto, que abriu os olhos num espanto incontido.

- Louvado seja Deus! Quem vejo na minha frente!

Egica sorriu.

- Sim irmão Gondemaro! Sou eu... o filho do homem que ccrnvertes-tes em Salinas!

- E que me quereis?

- Preciso do vosso auxílio. Trago comigo alguém a quem muito quero e que corre perigo neste momento.

Chamou, com doçura:

- Eulália! Aproxima-te.

A jovem apareceu ante os olhos ainda mais espantados do velho monge. Com voz quase velada, ele perguntou a Egica:

· jovem elucidou:

- É Eulália, a filha do rei Ervígio.

O monge levou uma das mãos ao peito.

- Santo Deus! Entrai para onde vos não vejam aqui e contai-me o que neste momento vos aflige.

E, abrindo com precaução singular a grande porta do mosteiro, o monge introduziu na santa morada o casal fugitivo.

Lá fora, a noite começava a cair...

Quando o jovem Egica acabou o relato da sua odisseia ' raptando a filha do rei Ervígio para vir ao Mosteiro Máximo de Monte Medúlio procurar um amigo que os casasse, o irmão Gondemaro olhou-os fixamente, num ar aflito.

- Que o Senhor Deus dos Exércitos me inspire, pois não sei que hei-de fazer!

Egica sobressaltou-se.

- Não sabeis... porquê?

O monge explicou:

- A noite envolve agora os campos e isto aqui é deserto! Todavia, no mosteiro não podem ficar mulheres e muito menos a filha do rei Ervígio!

Eulália levantou-se com dignidade. - Não desejo ser uma sombra para a vossa consciência. Aceito a expulsão e só desejo que a morte me encontre depressa!

Egica protestou, magoado:

- Eulália! Enquanto o meu braço puder erguer-se, nenhum mal te acontecerá! Continuemos descendo a terra lusitana até aos Hermínios e talvez os contrafortes dessa serra sejam mais generosos que este mosteiro!

O monge tapou o rosto com as mãos. Silenciou durante alguns segundos. Depois murmurou, como em oração:

- Que Deus se amerceie de mim!

Destapou o rosto e encarou os jovens.

- Se vos deixo partir, os lobos ou os salteadores poderão matar-vos. Se vos recolho... atraiçoo uma das nossas regras! Que hei-de fazer? Que Deus me inspire!

Egica retorquiu:

- Escolhei, irmão, entre as nossas vidas e a tranquilidade da vossa consciência.

- Ai de mim! A tranquilidade foi-se com o pôr do sol e a vossa aparição. Não há, pois, por onde escolher. Ficai! Vou casar-vos. Agora mesmo e secretamente. Depois emprestarei um hábito à filha do rei Ervígio para que pernoite aqui. Todavia, logo que a luz do dia desponte, dar-vos-ei um salvo-conduto para que possais ir à presença da dama que vive num castelo próximo. Só ela poderá abrigar-vos.

Egica apertou a mão do monge.

- Que Deus vos recompense, irmão Gondemaro!

Quando a manhã voltou a banhar de luz os campos, onde os passarinhos saltitavam cantando e brincando alegremente, encontrou os noivos já prontos para a nova jornada, aliás curta.

Com a alma gritando alegrias, o par enamorado despediu-se do monge Gondemaro. No rosto dos jovens espalhava-se a felicidade. O monge reparou neles e disse, olhando a filha de Ervígio:

- Pareceis outra, esta manhã!

Ela sorriu-lhe.

- Sou feliz, irmão Gondemaro! E não esquecerei quanto vos devo dessa felicidade.

O monge meneou a cabeça.

- Não canteis hossanas antes de tempo! A tempestade ainda não passou. Há que informar vosso pai da decisão que tomastes e obter o seu perdão. Felicidade é o reflexo da paz nos vossos corações. Sem essa paz, nada fará sentido. Mas ide. Deus vos abençoará! Vou enviar ao rei vosso pai um mensageiro de confiança, pedindo-lhe perdão para vós dois... e para mim, que vos uni na presença de Deus sem o consentimento do rei Ervígio.

O jovem godo sorriu para o monge. - Quanto vos ficamos devendo! Só Deus poderá pagar-vos!

Eulália olhava agora o estranho habitante do mosteiro com certa ansiedade. Egica depressa deu por essa repentina mudança.

- Que tens, meu amor?

Ela fitou o horizonte distante. A sua voz fraca, de menina, esclareceu num suspiro:

- Meu pai era tão meu amigo! E tudo isto por causa de um guerreiro ambicioso que fingiu amar-me e jurou coisas incríveis... Gostava de saber o que fará meu pai depois de escutar o vosso mensageiro, irmão Gondemaro.

Ele prometeu:

- Irei procurar-vos e far-vos-ei ciente da sua resposta, seja ela qual for. Ide, pois, descansada na paz do Senhor, porque a luz do dia já é clara!

Eulália olhou em volta, como se visse aquele cenário pela primeira vez.

- Como é linda esta serra! Os Romanos chamaram-lhe Monte Medúlio? Pois eu penso que ela mais parece uma enorme agra. Quem a cultiva, irmão Gondemaro?

- Os monges do nosso mosteiro e alguns particulares. Todos aqui trabalham. Esta é uma terra abençoada por Deus!
Egica sorriu, repetindo:

- Serra de Agra! Eis um bom nome, com o qual a baptizo.

O monge sorriu também.

- E julgais que assim ficará chamada a serra, só porque vós assim a denominais?

Egica sentenciou, teimoso, com aquela energia que punha em todas as suas palavras e actos:

- Daqui por diante os nossos filhos só conhecerão esta serra como a de Agra. Os nossos netos falarão dela aos seus netos. E assim por diante, através dos séculos!

No rosto do monge nasceu uma expressão de dúvida. Mas sorriu, incitando:

- Experimentai ... se, isso vos apraz. Tudo é possível quando Deus quer!

E despedindo-se:

- Adeus, irmãos. Que o Senhor vos acompanhe!

Alguns meses passaram. Eulália e Egica continuavam no castelo onde o salvo-conduto do monge Gondemaro os abrigara. Não mais tiveram novas dos soldados de Ervígio. Mas a saudade do lar paterno punha uma secreta mágoa no coração de Eulália, horas esquecidas espreitando, do mirante do castelo, o horizonte mudo, para lá da serra de Agra.

Certo dia, Eulália descobriu um vulto caminhando em direcção ao castelo. Desceu a correr, com o coração batendo tão forte que lhe estremecia a túnica alvíssima.

Chegada à porta larga, abriu-a e viu na sua frente o irmão Gondemaro. Sem hesitar, correu para ele.

- Trazeis-me notícias de meu pai?

Ele sorriu e falou num ar descansado:

- Recebi-as ontem ao anoitecer e pus-me a caminho logo de manhã.

- E que novas me trazeis?

- Vosso pai enviou esta resposta: «Se me derem um neto varão, perdoar-lhes-ei a fuga e a desobediência e nomearei Egica meu sucessor. Se me não derem um neto no prazo de um ano, esquecerei que tive uma filha chamada Eulália! »

A jovem uniu as mãos em muda acção de graças. O seu rosto transfigurou-se quase e a tremura das pernas obrigou-a a sentar-se numa pedra da entrada. Entretanto Egica chegava de um passeio a cavalo e, vendo o monge, correu também para ele.

- Muito me alegro em ver-vos!

Eulália não lhe deu tempo a prosseguir. Precisava exteriorizar a sua felicidade:

- Egica! Meu pai Perdoa-nos se lhe dermos um neto dentro de um ano e nomeia-te seu sucessor!

Egica olhou a jovem esposa com enleio.

- Querida! Teremos de pedir a Deus que o filho que esperamos seja um rapaz! Nascerá nesta serra de Agra e será um dia rei dos Visigodos!

Como num eco, o monge ajuntou: - Que Deus vos oiça!

Eulália voltou a olhar o horizonte, que desta vez parecia mais claro, menos fechado. Egica passou-lhe o braço pelos ombros e beijou-a nos cabelos. Esqueceram por momentos a presença do monge. E quando se lembraram dele, viram-no já, amparado ao seu bordão, a caminho do Mosteiro Máximo.

Eles riram, contentes.

Egica murmurou:

- Pobre velho! Nem sequer lhe agradecemos! E deve ser-lhe difícil, esta viagem a pé.

Eulália encostou a sua linda cabeça ao braço forte do marido.

- Lavar-lhe-emos o nosso filhinho logo que nasça, para que ele o abençoe!

Ele acariciou-lhe os cabelos. - E depois?

Eulália suspirou fundo:

- Depois... depois...

A voz sumiu-se-lhe quase, de emoção:

- Depois... partiremos, de novo, mas desta vez... sem medo de sermos perseguidos pelos soldados do rei Ervígio!...

Os textos apresentados foram recolhidos em obras diversas

Dados do percurso

Informação sobre os aspetos mais significativos:

Data2002-08-28
Distância total14 km
Nº de participantes34